quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Para lembrar a Irene

O funeral, por cremação, da minha mãe Maria Irene Rodrigues da Silva teve lugar ontem, no cemitério de Rio de Mouro, Sintra. Estou obrigadíssimo a todos presentes e a todos os que me comunicaram então, antes ou depois, os seus sentimentos. Deixo aqui a pobre elegia que lá fui conseguindo, entre lágrimas, escrever, no dia anterior, para lá ir conseguindo, entre lágrimas, recitar, ontem, no funeral.

BREVE ELEGIA FÚNEBRE
Hoje há duas tristezas, e nenhuma delas é a morte da Irene. Já faz muitos anos que a Irene desistira de viver. Decisão racional, temperamental, ou resultado de depressão—não se sabe—e esta é a primeira tristeza: a nossa incapacidade de perceber, perceber mesmo, a fase final da extraordinária vida desta extraordinária mulher.
A segunda tristeza é que o próprio Universo, tão estúpido como nós, tenha demorado todos aqueles longos anos a conceder à Irene a concretização da sua desistência. A aceitar a sua demissão. Fê-lo, finalmente, anteontem. No dia dos mortos.
Até ao misterioso pedido de demissão, a vida da Irene é um facto de altíssimo nível que tem de ser lembrado. Professora, autora, mãe, uma vida profissional e pessoal riquíssima, generosa, criadora, corajosa, pioneira, muito acima da média. A Irene possuía no mais alto grau as três qualidades—difíceis de conjungar—da capacidade de trabalho, racionalidade, e emotividade.
Circula a tese de que cada um dos seus três filhos herdou uma destes qualidades—em separado. Parece que isoladas, diluídas na sopa genética, essas capacidades não têm o mesmo poder. Cá estou eu, por exemplo, com a minha racionalidade, não chegando a lado nenhum.
Não. Só conjugadas—improvável, singularmente conjugadas—as três forças—capacidade de trabalho, racionalidade, emotividade—produzem resultados excecionais.  Essa conjugação ocorreu no fenómeno Irene, e é algo que acontece uma vez num milhão de casos, e portanto é algo que tem de ser recordado. É uma alegria do Universo.
Licenciada em Ciências Físico-Químicas, com alta nota, foi convidada para docente da Faculdade. Isto num tempo—década de 1940—em que ainda era difícil e raro uma mulher fazer estudos superiores, especialmente em Ciências, e ainda mais difícil e raro aceder à respetiva carreira académica. Recusou, para ir lecionar no secundário. Porquê?
Rómulo de Carvalho.  A Irene fora aluna deste extraordinário professor—no secundário—e ficara cativa do seu génio. O seu outro modelo era, naturalmente, Marie Curie—cuja história bebeu sem dúvida também dos livrinhos do Mestre, História dos Isótopos, História da Radioatividade. De toda a formação que recebeu, foi a do Mestre a que reteve. Que a impressionou, que a apaixonou. E que, naturalmente, quis emular.
E assim o fez. Com absoluto sucesso. Durante toda a sua vida ativa, a Irene ensinou e escreveu Físico-Química.  Com um cuidado, interesse, abrangência, coerência, rigor, paixão, dum grau extraordinário, que alguns de nós tiveram a felicidade de poder observar.
É principalmente à Irene, à graça da sua educação, ao exemplo da sua história, que devo o meu modo peculiar mas inalienável de olhar o Universo, e das coisas grandes que o Homem sonha e faz nele. Uma visão tentativamente integrativa, que funde humanidades e ciências, espíritos e matérias.
A Irene, ao olhar para dentro do átomo—o principal objeto das sua querida ciência físico-química—, via—corretamente—todo o Universo. Chegou a descrever essa visão artisticamente, na sua pintura amadora.
Com ela eu também aprendi a olhar para o pequeno, para o pouco—até para o nada—e ver tudo. Uma visão de abrangência, tolerância, e duma claridade por vezes cegante e inibidora da ação—mas essa debilidade perante a grandeza é defeito inteiramente meu: não tendo recebido, gratuitamente, o gene do pragmatismo, do fenomenal genoma Irene, também não o soube conquistar.
Devo à minha mãe Irene a compreensão, a apreciação da poesia igualmente integrativa do Mestre que ela fez nosso:
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
(António Gedeão)
Mário
2010-11-03

Nos meses de luto subsequentes esta elegia tomou forma duma música que me foi aparecendo na cabeça e lá consegui esboçar uma gravação:
http://soundclick.com/share.cfm?id=10222190